Encarnação, o excesso do domP. João Norton SJBrotéria

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Dezembro é tempo de Natal. O termo está assimilado na linguagem corrente, mas esconde uma transcendência abissal. Contradiz, aparentemente, a afirmação do filósofo L. Wittgenstein de que compreendemos o sentido de uma palavra se a sabemos usar na linguagem. Ou talvez, de facto, o próprio jogo de linguagem do Natal, nas suas crenças, desejos e comportamentos específicos nos abra a essa mesma dimensão profunda da realidade. Não o seu aproveitamento comercial e brilho externo, mas a atmosfera de encanto, a simplicidade do espírito de infância, a benevolência para com os outros e a paz como aspiração profunda, nem que seja na duração duma noite excecional. Na linguagem, palavra e gesto andam a par. O gesto ritual desta quadra é dar presentes, participar da prática familiar e social do dom, que visa ultimamente o dom de si e se revela como vestígio dum excesso do dom. De facto, a economia do dom configura uma compreensão da realidade, na medida do espanto diante da imensidão do cosmos, da via láctea, do planeta terra, da infinita imaginação da forma e da cor das coisas, da diversidade das paisagens e dos seres vivos, da pluralíssima variedade das vivências do ser humano e das suas produções. Numa certa disposição de abertura estupefacta à realidade, tudo é dom. Não apenas como espetáculo mais ou menos distante, mas também como presença. O que damos de presente deriva dessa praesentia, que remete para algo que está perto, ao alcance, em proximidade e coincidência íntima. Diante do excesso do dom, que timidamente mimetizamos, o poeta bíblico interroga a sua origem e racionalidade: “Que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? “ (Sl 8,5). Que é o homem? A questão das identidades e da identidade profunda late hoje no coração do homem e da cultura. Com Sublimitas et miseria hominis (2023), o Papa Francisco assinalou oportunamente os quatrocentos anos do nascimento de Pascal, filósofo que perscrutou com inquietação e particular inteligência a condição humana: «Qual quimera é então o homem, qual raridade, qual monstruosidade, qual caos, qual sujeito de contradições, qual prodígio, juiz de todas as coisas, frágil germe da terra, depositário do verdadeiro, cloaca de incerteza e de erro, glória e escória do universo? Quem desenvencilhará este emaranhado?»[1]

Enquanto conceito que procura expressar a sua realidade profunda, o Natal diz-se “encarnação”. Na Contemplação da Encarnação dos Exercícios espirituais, Inácio de Loiola imagina «como as três pessoas divinas olhavam toda a superfície e redondeza de todo o mundo» (EE 102). Para além de manifestar a conceção teológica cristã de Deus como comunhão de pessoas e a conceção cosmológica dum planeta redondo, vê ainda, refletido na retina de Deus, um mundo em desavenças e escuta a voz de uma extraordinária deliberação: «que a segunda pessoa se faça homem para salvar o género humano». E nesta formulação teológico-mítica, no melhor sentido de mito enquanto narrativa simbólica que figura um sentido profundo, acrescenta: «chegada a plenitude dos tempos, se envia o anjo Gabriel a Nossa Senhora».

Quanto ao estado do mundo, continuamos a poder segui-lo em direto ou através dos media, ainda menos dispensados de um juízo crítico que em relação ao mito. A invasão da Ucrânia pela Rússia, devastadora de vidas humanas e projetos de vida, cidades e territórios, destrutora de património artístico e instigadora de desequilíbrios geoestratégicos. O ataque terrorista do Hamas em Israel e a resposta de Israel respaldada pelo direito à autodefesa e à sobrevivência nacional, mas escandalosamente desproporcionada na medida do massacre de crianças inocentes e de uma população indefesa. Menos mediática, a mortandade na guerra da Etiópia soma, em 2023, números que bradam aos céus. Também recentemente o Papa Francisco retomou na exortação Laudate deum (LD), em tom de renovada gravidade, o apelo a uma ecologia integral. Aponta, aí, as conexões entre a degradação ambiental, as injustiças sociais globais e a autossuficiência de um poder humano sem limites. «Não estamos a reagir de modo satisfatório” (LD 2), “Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considerar a maneira como o está a fazer» (LD 23). Tomei estes fragmentos do nosso mundo atual apenas para apontar um excesso do mal nas antípodas do excesso do dom que comecei por invocar.

Voltando à poética bíblica, que dá voz às angústias da humanidade ferida, a todas as mães com filhos inanimados nos braços, independentemente da nacionalidade ou da religião, ouvimos:

Ergo a minha voz e clamo;
   a Deus ergo a minha voz, para que Ele me ouça
No dia da minha angústia procurei o Senhor;
   à noite, ergo as minhas mãos sem descanso,
   e a minha alma recusa ser confortada.
Lembro-me dos prodígios do Senhor.
   Sim. Lembro-me das suas maravilhas de outrora.
Tu és o Deus que realiza maravilhas;
Manifestaste entre os povos o teu poder. (Sl 77, 2-3.12.15)
Ter-se-á Deus esquecido da sua compaixão,
   ou terá fechado com a ira as suas entranhas?
Por isso eu digo: “A minha dor
   é que a mão do Altíssimo tenha mudado assim”(Sl 77, 10-11)

Estão assim reunidas grandes interrogações da sabedoria Bíblica: Quem é o homem para que te lembres dele? Onde está Deus? Terá abandonado a obra das suas mãos? Ter-se-á esquecido da misericórdia que exerceu noutros tempos? Perguntas universais, tão teológicas e filosóficas como existenciais, para as quais a resposta cristã é o Natal, a “encarnação”.

De facto, o mistério da encarnação está no princípio e no centro da fé cristã. Na ordem da experiência, a ressurreição, a Páscoa da ressurreição, é cronologicamente a verdade primeira na boca das mulheres, que na madrugada do terceiro dia foram ao túmulo de Jesus, e no primeiro anúncio (querigma) que S. Paulo recolhe da tradição oral anterior às suas cartas. Mas, na ordem da reflexão, a encarnação é central e na unidade e correspondência dos mistérios cristãos pode dizer-se que se cumpre plenamente na ressurreição. Nela se revela o mistério de Deus trinitário; a participação do ser humano nesse mistério através da humanidade de Jesus Cristo; e, pela sua ressurreição, a extensão dessa participação a toda a realidade humana e mesmo a toda a realidade cósmica. A formulação breve deste mistério no evangelho de João, só aparentemente é simples: «O Verbo de Deus fez-se homem» (Jo 1,14). Como traduzi-la na linguagem comum de alguém que se propõe superar a mitologia popular por uma reflexão aprofundada, mas sem recorrer aos conceitos especializados da teologia? Porque, muitas vezes, o que parece evidente para o teólogo que se move no mundo da revelação, não o é para o entendimento comum.

Podemos, à partida, recorrer à etimologia do termo hebraico עמנואל (Immanu'El), que o evangelho de Mateus nos dá em grego, significando “Deus connosco”, traduzindo a solidariedade de Deus com a humanidade e o mundo criado. Numa perspetiva abrangente, este “Deus connosco” remonta das origens do universo e da filogénese até à história de um povo que o reconhece. No mesmo movimento desta aproximação de Deus à humanidade, na chamada “plenitude dos tempos”, Deus irrompe no mais íntimo da carne humana, em gestação no seio de uma mulher. O seu significado pleno manifesta-se na realidade humana total de Jesus de Nazaré, em todo o seu ser e em toda a sua vida pessoal, gestos e palavras, encarnados e inculturados, na sua atitude e nas suas relações com Deus e a religião do seu tempo, com a injustiça e o amor, a morte e a vida. A sua crucifixão responde à pergunta “onde está Deus?”: está aí mesmo, entre dois condenados à morte, entre os marginalizados, os que choram, as vítimas inocentes. Na maturação da experiência e significado da ressurreição, os seus discípulos perceberam que, aquele que tinha vindo até eles, estava agora com eles para sempre, como fermento espiritual na massa do mundo ou como seiva na árvore da vida, para utilizar duas imagens-parábolas que ele próprio empregou.

A forma deste acontecimento cósmico, histórico, biográfico, passível de interpretação é portadora de inteligibilidade e de sentido. Um grande teólogo do séc. XX, Karl Rahner, expõe o mistério da encarnação como o despojamento de si do próprio Deus (kenosis), que pelo dom infinito de si mesmo assume a finitude da realidade criada, cujo reverso é o germinar, desde o interior dessa realidade finita, do infinito de Deus. Podemos dizer algo semelhante em perspetiva antropológica. O ser humano é assim a realidade pela qual Deus diz o seu próprio mistério, a sua Palavra, (o Verbo de Deus). Correlativamente, o ser humano descobre a sua identidade mais profunda como ressonância divina no mais íntimo de si mesmo. Rahner define-o como “ouvinte da Palavra”, onde ouvir significa silêncio, interioridade, encarnação da Palavra criadora, performativa que é o “Verbo” de Deus.

Mais concretamente, é na historicidade de Jesus Cristo o nazareno, desde o seu nascimento até à morte na cruz, que o mistério absoluto se realiza e se revela a si mesmo. Cristo revela quem é Deus: «quem me vê, vê o Pai» (Jo 14,9), «Deus é amor» (1 Jo 4,8.16); simultaneamente revela quem é o ser humano e como tornar-se realmente humano. A humanidade de Jesus, «o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida» (1Jo 1,1), segundo o testemunho do evangelista João, é descrita como habitada por Deus ou, numa formulação trinitária, unida ao Pai pela comunhão num mesmo Espírito de santidade, união íntima “sem confusão nem separação”, parafraseando o concílio de Calcedónia (351), na qual o ser humano é chamado a participar. Mais concretamente foi e é alguém que «passou fazendo o bem» e a quem foi atribuído o título de «Príncipe da paz». A tarefa humana é assim, antes de mais, fazer-se humana, em resposta a este dom e graças a ele. A antropologia é cristologia, diz Rahner. Humanizar o ser humano é cristificar a sua realidade presente total, inseparavelmente corporal, psicológica, mental, social, cultural, cósmica. Portanto, não nos espanta que a noção de encarnação seja fundamental também no entendimento do cristianismo como cultura, como contributo da fé cristã para a cultura e as culturas, tanto eclesiais como seculares e religiosas, inculturando-se “sem separação nem confusão” num diálogo com elas, tão sapiencial e benevolente quanto critico e profético, aspirando a um “tempo” bíblico em que Cristo seja tudo em todos, e ajudando a realidade humana a transitar do excesso do mal à economia do dom.

Que à escala da cósmica e amorosa paciência de Deus, o modesto projeto desta revista e o amável contributo dos seus autores nos possa conduzir a um Santo Natal.

[1] Pensamentos, 131 (segundo a numeração Lafuma).

 

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